Tempo de Memórias

Reprodução/Segredos do Mundo

Este texto foi escrito numa tarde de sábado, ainda sem um título, apenas com um vago propósito: refletir sobre o processo que leva alguém, algum grupo social, uma pessoa, um eu que pode ser o meu, a se fazer formador de almas, um docente. Sem dúvida, narrar sobre a construção da identidade docente requer debruçar-se sobre a história e sobre o projeto de educação e sociedade que cada tempo e cada espaço formulam. Hoje, já com título, o texto é oferecido à leitora e ao leitor como contribuição à reflexão sobre a extremamente relevante questão de quem é o profissional que nos ensina e ensina a nossos filhos.

Haveria uma identidade docente nacional? Resposta difícil para uma indagação crucial. Desde que Dante Moreira Leite, um dos pilares da USP, escreveu seu clássico “O caráter nacional brasileiro”, ficou difícil predicar sobre generalidades nacionais. Podemos, quando muito, pensar sobre qual é a imagem que a sociedade tem sobre os professores, após tantas dificuldades vividas no contexto da pandemia do COVID-19.

A história nos remete à década de 1930, quando Miguel Couto, catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e deputado constituinte pelo Distrito Federal em 1934, atribuiu às professoras primárias de seu tempo um relevante papel na construção de um projeto de ordenação da sociedade, numa visão higienista de educação. O projeto dava aos docentes o papel de formar mentes e corpos saudáveis e dóceis.

Naquele tempo pensava-se ser necessário regenerar moralmente as massas. Hoje isso pode parecer descabido. Mas tal era o projeto de civilidade na chamada Era Vargas (1930-1945), que apontava para o futuro da pátria conduzido por professoras competentes, moralmente sãs, fisicamente sadias. Havia uma ‘alvura angelical’ marcadamente racista e uma missão ou apostolado no fazer docente.

Neste cenário, “as garças brancas”, como eram conhecidas estas professoras, rumaram em direção ao sertão. Cabia-lhes apoiar a campanha contra a mortalidade infantil e disseminar conhecimento sobre controle da natalidade e higiene pessoal. Era a cultura da higiene (Couto, 1993).

Cabia-lhes também o ensino da puericultura, com a incumbência de disciplinar comportamentos. A leitora e o leitor já ouviram falar da palmatória? Era como uma escumadeira com a qual a professora disciplinadora aplicava golpes na palma da mão do aluno faltoso. Esses golpes eram chamados “bolos”. Mas não eram apetitosos como os bolos de fubá da Tia Nastácia. Eram castigos físicos para endireitar o aluno que se desviava do caminho certo.

A breve retomada dessa “pedagogia do bolo” é necessária para que nos lembremos o quanto e por quanto tempo a identidade do professor brasileiro foi forjada por vias equivocadas. Evidencia-se assim a relevância do debate sobre as metáforas que vinculam a formação docente a uma missão, sacerdócio ou a identificação da professora com um parente próximo, a tia, que ama a criança como a um filho. Depois que Paulo Freire mostrou que professora não é tia, que professor não é tio, mas profissionais da educação, é difícil ressuscitar esse conceito.

O resgate de ferramentas que auxiliem a reflexão, amplie debates e ajudem a compreender o processo de construção da identidade docente, numa perspectiva histórico-social, nunca se fez tão necessário e urgente. Acreditamos que o período que vivemos chama-nos a estudar a memória das escolas e das vidas docentes, para que esta não se perca nas brumas da ilusão. Encerramos lembrando poeticamente Novalis, o escritor alemão que acreditava na integração do homem com a natureza. Dizia ele: “A alma está ali, onde o mundo interior encontra o mundo exterior”.

Maria Eugênia de Lima e Montes Castanho é pedagoga, doutora em Educação pela Unicamp. Titular fundadora do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas.

Warlen Fernandes Soares é pedagoga, especialista em Psicopedagogia (Puc-Campinas) e em Educação Especial (Unisal), mestre em Educação (Puc-Campinas) e professora na rede municipal de ensino.

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