Dos ranços verbais

Por Lucinda Noronha
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Sempre tive mania com palavras. Não é à toa que me formei em Letras e que até hoje lido com elas como ferramenta de trabalho. Aliás, em qual profissão elas não seriam ferramentas, não é?

Acontece que hora ou outra me pego “bakhtiniando”, e que isso valha o neologismo. Para Mikail Bakhtin, teórico russo e seu círculo de estudiosos, a língua tem vida porque é um diálogo contínuo entre os sujeitos. E é claro que nessa continuidade dialógica surgem termos que se ocupam de certo modismo, fazendo parte das tendências — ou seriam “trendings” como agora se diz?

O fato é que estou dando essa volta toda pra dizer que ando ficando meio “ranzinza” com relação a alguns deles. E na série dos ranços verbais que venho acumulando se encontra RESILIÊNCIA.

No dicionário, a sua acepção voltada para a área da física não me incomoda tanto, mas em sentido figurado, sim! “Capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças.”

Capacidade de se adaptar à má sorte… sei… Então, se um indivíduo não se recobrar facilmente aos piores desígnios da vida, a culpa será dele por não ser resiliente o bastante? Como se já não bastassem os percalços, a culpa?

Será que alguém convenceu dona Maria (esse não é o nome dela, pra evitar a exposição) a ser resiliente?  Eu a conheci na estrada, atravessando a pista que liga o Bairro Alegre a Águas da Prata. Durante uma chuva forte, ela estava com o netinho de cinco anos de idade, salvo a memória.

Fiz imediatamente o retorno na pista. Voltava da escola com meu filho mais novo pra casa. Aproximei o carro da senhora com a criança. Perguntei:

“Posso lhe dar uma carona? Para onde a senhora vai?”

Ela não hesitou em aceitar, claro. Entrou no carro, acomodando o netinho no banco de trás junto com duas mochilas enormes. Contou-me que cuida dele enquanto o filho e a nora trabalham, mas que sempre tem que esperar pelo horário de ônibus para voltar para Águas da Prata, pois sempre tem coisas a fazer por aqui. Na falta de ônibus, disse que sempre tem a esperança de que uma alma bondosa lhe ofereça carona. Contou-me muito mais. Disse que é professora aposentada, que os dias do mês são sempre maiores do que seu salário, mas que para se sentir útil, às noites de quartas-feiras alfabetiza um grupo de adultos em sua casa. E ainda complementou: “a gente nessa vida aprende na marra a ser resiliente. Assim a gente sobrevive”.

Obviamente concordei com ela, até porque não era meu papel ali trazer uma discussão sobre o termo que ela usou com tanta convicção. Ela me agradeceu e, antes de descer o neto do carro, pegou minha mão e a beijou dizendo: “você foi a alma bondosa do meu dia! Deus lhe abençoe, filha!” “Amém, dona Maria!”

Cheguei, descarreguei meu material escolar. Tinha muita correção pra fazer e notas pra lançar, mas não me livrei ainda da necessidade de reformular o porquê de minha implicância com a tal da resiliência. Dona Maria estava certa?

Nenhuma resposta exata, mas pelo menos a construção de que a minha crítica talvez não fosse sobre o conceito em si, mas sobre a forma como tem sido esgotado e vendido.

Enfim, o dia segue, a noite se aproxima. Hora do banho pra mim é momento de assentar as ideias que parecem fluir com a água que cai no corpo. E é fluidamente mesmo que resgato um capítulo do livro de Krenak, que li há alguns meses. O autor relata quando seu povo havia sido devastado por mais uma invasão dos brancos: “Nós, os Krenak, decidimos que estamos dentro do desastre. Ninguém precisa vir tirar a gente daqui. Vamos atravessar um deserto. Ou toda vez que você vê um deserto sai correndo? Quando aparecer um deserto, atravesse!”.

Desliguei o chuveiro ao mesmo tempo em que pensei: “Dona Maria atravessa seus desertos”. Se isso for resiliência, que seja! Que só não se confunda com um conceito de massacre. E que não se encapsule aos moldes dos coachings de inteligência emocional, conceito que para mim só poderia ter sentido como inteligência caso também valorizasse o sentir raiva, o frustrar-se, o defender-se e o atravessar desertos sem subserviência. Talvez o mundo, assim, quando um dia for mais justo, não mais naturalize a existência de “uma gente que rí quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta!”.

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