Por Lucinda Noronha
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Ah, os algoritmos! Estes que, segundo dizem por aí, são filtros usados para manipular nossas vidas como usuários da grande rede. Para o bem ou para o mal, nesta semana esses seres internéticos me surpreenderam ao receber notificações de curtidas e comentários de uma crônica que havia postado há um ano, na ocasião de comemoração dos 90 anos de meu pai, hoje, com 91. E mais coincidentemente ainda, nesta mesma semana recebi o convite de uma homenagem a ele, como artista plástico sanjoanense, pela Academia de Letras de São João da Boa Vista. Fiquei tão feliz que decidi, enfim, aproveitar a boa manipulação das redes. Eis a crônica:
Há mais de 50 anos a extensão do quintal da casa de meus pais era um terreno que fazia fundo com a loja de materiais de construção do meu avô materno. Naquele lugar o meu mundo de histórias e de imaginação era ilimitado. Até meus dez anos de idade era lá que eu brincava depois da escola. E, na maior parte das vezes, gostava mesmo era de estar sozinha para que nada e ninguém pudesse interferir nos sonhos e nos infantis devaneios que faziam meus dias tão mais felizes. Certa vez, meu pai, sabendo dessa minha preferência, perguntou-me:
“Já que gosta tanto de brincar sozinha nesse quintal, o que você quer ser quando está nele?”
Eu era tantas coisas naquele espaço, e como criança, nunca tinha pensado em ser apenas uma. Mas quis dar uma resposta.
“Eu queria ser a Mulher Maravilha!”
Então, no mesmo momento, ele recolheu pedaços de papelão que tinha em seu ateliê e com eles formou uma fantasia perfeita da heroína amazona. Colete, canos da bota, cinturão, barbante como laço na cintura… e ah! a coroa, era linda a coroa! Tudo pintado exata e perfeitamente em tons de azul, vermelho, branco, e o destaque-dourado, que era feito com spray e brocal — o antecessor do glíter.
Enfim, meu quintal, que já era gigante, dobrou de tamanho! Não me lembro muito bem de quais estripulias fazia com aquela fantasia, mas isso pouco importava. Eu poderia ficar parada embaixo de uma árvore, vestida com ela, e me imaginando salvando a humanidade mesmo sem dar um passo à frente!
Passadas a infância e a adolescência, um dia, diante da primeira decepção que tive na vida, meu pai me chamou novamente e perguntou:
“O que você gostaria de ser agora?”
Respondi:
“Pai, no momento, a única coisa que gostaria é de ser alguém sem essa mágoa que estou sentindo.”
Sentado na cadeira de balanço que herdou de sua mãe, ele fazia lentos movimentos enquanto me dizia:
“Quando era criança foi mais fácil tirar essa resposta de você. A vida às vezes nos endurece, mas entre tudo o que já lhe desejei o mais importante foi que nunca o passar do tempo — esse químico inexorável — fosse capaz de transformá-la em uma mulher sem sonhos. Mais importante do que querer ser a Mulher Maravilha foi um dia você ter tido um desejo, ainda que ser uma heroína hoje é o que menos quero que exija de si mesma. Então, guarde bem o que vou lhe dizer: daqui a dez anos você ainda será jovem, daqui a 20, 30… ainda será. Tudo pode se parecer com um grande vazio agora, mas nenhum sentimento continua para sempre, na mesma proporção. E você vai superar, e enquanto isso não acontecer, estarei aqui pra lhe dar apoio!”
E por tudo isso meu pai se tornou o meu maior quintal. E ainda é! E hoje, se ele me perguntar o que gostaria de ser, talvez ainda não tenha resposta, mas tenho a felicidade e o orgulho de ser SUA FILHA!
Lucinda Noronha, 8 de maio de 2023.