Nós, humanos, a arte e a ciência

Surpreendi-me vendo o renomado neurocientista da área de IA, Miguel Nicolelis afirmando que encontrou o fio da meada de suas descobertas sobre o cérebro humano no livro “A história da arte”, do historiador Ernst H. Gombrich, um dos autores em que baseei estudos sobre a intelectualidade da arte .

Analisando a posição central do cérebro humano nas diversas áreas do conhecimento científico, diz ele ter achado um aliado, vendo que sem um cérebro humano, moldado e refinado por um processo evolutivo, tão particular quanto irreproduzível, não existiria algo conhecido por nós todos como arte. Isto é, todas as nossas manifestações artísticas, e as de todos os nossos antepassados, são produtos da incansável mente humana, projetando para o mundo exterior as imagens mentais criadas em nosso cosmos neuronal interior.

Os mesmos processos mentais estão presentes na arte e na ciência. Tanto o artista quanto o cientista têm as mesmas possibilidades cognoscitivas (raciocínio, memória, imaginação, abstração, comparação, generalização, dedução, indução, esquematização).

Em meu estudo sobre a intelectualidade da arte defendi ser esta uma atividade humana de pleno valor intelectual, um dos meios para entender a história da sociedade humana. O pensamento plástico é uma das atividades primeiras do homem para explorar a realidade. É uma atividade especulativa do ser humano na exploração e domínio do mundo. Veja-se, por exemplo, as magníficas expressões de arte rupestre na caverna de Chauvet-Pont-d’Arc, localizada no sul da França, com pinturas rupestres que datam de cerca de 36 mil anos atrás. Ela nos mostra que os humanos já eram capazes de produzir arte complexa e sofisticada há milhares de anos com um profundo conhecimento da anatomia dos animais e uma habilidade artística impressionante.

De fato, arte é uma atividade cerebral que envolve a ativação de diversas áreas do cérebro, incluindo a visão, a audição, o tato, o olfato e o paladar. Através de estudos de neuroimagem, Nicolelis e sua equipe identificaram que a arte ativa áreas do cérebro relacionadas à cognição, à emoção e à memória.  Isso significa que nos ajuda a pensar, sentir e lembrar. É fundamental para o desenvolvimento humano porque ajuda a compreender a nós mesmos e o mundo ao nosso redor. Coisas que a máquina não faz.

Reforçamos a singularidade da mente humana e o cérebro como o centro da fase evolutiva do ser humano. O cérebro humano e as máquinas são sistemas complexos com diferenças fundamentais em sua estrutura, função e capacidades.

O cérebro humano inclui funções de pensamento, cognição, memória, emoção e movimento. Tarefas exclusivas de nós, humanos: criatividade e inovação. Compreensão e empatia. Tomada de decisão moral. Somos capazes de criar o mundo simbólico da cultura, que inclui a arte, expressão da criatividade, sensibilidade e inteligência.

À medida que a tecnologia continua a avançar, é possível que as máquinas sejam capazes de realizar novas tarefas, mas é provável que algumas delas continuem a ser exclusivas dos humanos por requererem habilidades e criticidade fundamentais da nossa capacidade cerebral evoluída.

Há uma diferença fundamental entre o cérebro humano e as máquinas: o cérebro humano é um sistema biológico natural, enquanto as máquinas são sistemas artificiais. Essa diferença determina as capacidades e limitações de cada sistema. O cérebro humano é um sistema altamente flexível e adaptável, capaz de aprender e se adaptar a novas informações e situações. Máquinas operam com o digital e os humanos com o analógico. O digital é uma ferramenta poderosa, mas não suficiente para capturar a essência da experiência humana.

Colocando o cérebro humano como central na história do mundo, do universo, as implicações são profundas, abrangendo a forma de se interpretar o passado da humanidade, “como de reconhecer o nosso viver presente, bem como decidir que tipo de futuro queremos para nós e para os nossos descendentes”. A história pode ser contada e analisada do ponto das particulares abstrações mentais de cada uma das diferentes civilizações humanas, em diferentes momentos da existência.

Nossa tarefa quanto à IA.  São muito úteis ferramentas como a matemática e a estatística que a IA nos oferece, permitindo análise e resultados em vários campos. No entanto, há graves problemas com o uso contínuo influenciando e moldando o comportamento humano. Nossa tarefa constante é aumentar nosso conhecimento nos mais variados campos com o auxílio das informações que a inteligência artificial nos oferece.

Indispensável é combater a manipulação das consciências, preservando os valores preciosos da liberdade humana, ínsitos à democracia. É preciso fugir da dependência e da submissão. É preciso ensinar a pensar a partir das informações, verificar sua proveniência e transformar em conhecimento crítico. Nicolelis alerta sobre a crescente e cega capitulação da presente civilização às duas perigosas abstrações mentais criadas pelo ser humano: Igreja do Mercado e Culto da Máquina.

O risco de o desenvolvimento da IA ser dominado por um pequeno número de grandes corporações e governos pode aumentar a desigualdade e diminuir a diversidade nas aplicações de IA. Para evitar isso é importante e mesmo indispensável incentivar o desenvolvimento de IA descentralizado e colaborativo.

É preciso procurarmos entender e aproveitar cada vez mais o que a IA nos oferece e termos a clareza de nossa luta para que a capacidade de criação, de crítica e de decisão seja sempre nossa, nunca da máquina.

Maria Eugênia L.M. Castanho, mestre e doutora em educação pela UNICAMP, professora universitária, membro do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas, SP.

COMPARTILHAR

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here