Antes de o leitor terminar de ler este parágrafo, dois cidadãos estarão tombando ou sendo assaltados, vítimas da bandidagem no País. De cinco doentes que baixam nos hospitais brasileiros, pelo menos um é vítima de uma “guerra civil” que mata por ano quase 50 mil cidadãos, número equivalente ao dos EUA e mais gente que os mortos em conflitos como este entre Rússia e Ucrânia. P.S. Com 10% das armas dos EUA, Brasil tem taxa de homicídios com armas de fogo 5 vezes maior. No Brasil, a taxa é de 23,5 assassinatos por 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, a proporção é de 5,6, mesmo com os casos de mortandade em escolas.
A trilha sangrenta da violência no Brasil é longa. Até 1830, o País não tinha um código penal, submetendo-se como colônia portuguesa às Ordenações Filipinas, que abrigavam os crimes e penas a serem aplicadas, como morte, confisco de bens, multas e humilhação pública do réu. A reforma do sistema punitivo veio com a Constituição de 1824, extinguindo-se o açoite, a tortura, o ferro quente e outras penalidades.
O déficit de vagas nas prisões é histórico. Em 2019, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) havia cerca de 460 mil vagas para abrigar 800 mil detentos. Leve-se em consideração nessa estatística o elevado número de prisões provisórias, muitas desproporcionais ou descabidas.
Outro ângulo da violência é o do empobrecimento do país. O rombo da Previdência tem a colaboração do cano assassino que aleija multidões, alarga fila de hospitais, multiplica pensões de viúvas e devasta o PIB. Pesquisa do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que a violência impacta o PIB em 6%, algo em torno de R$ 400 bilhões em valores de hoje, soma equivalente ao gasto com educação. Dinheiro que poderia ser investido em hospitais, escolas, habitação, transportes, agricultura.
O quadro é aterrador: bandidos assaltando, sequestrando, matando pessoas; chacinas explodindo nos finais de semana; policiais matando bandidos; bandidos matando policiais; policiais matando policiais; bandidos roubando o dinheiro de companheiros presos; balas perdidas matando crianças; cárceres apinhados; estupros e mortes violentas cometidas pela mais fria estupidez.
Convivemos só em São Paulo com cerca de 100 mil bandidos soltos nas ruas. As cadeias públicas estão superlotadas. E, para fechar o circuito de violência, há sinais de que os negócios do PCC avançam no tráfico de drogas e na área dos crimes ambientais na Amazônia, com patrocínio de desmatamento, grilagem, garimpo em terras indígenas e extração ilegal de madeira. (A propósito, há cerca de 50 entidades que assumem o poder da violência no Estado brasileiro).
O clima em todo o País é de insegurança e medo. As polícias não conseguem desbaratar quadrilhas mancomunadas com os comerciantes de drogas, conter o ímpeto de galeras enfurecidas, aprisionar ladrões, estupradores e a corja de malandros que instalaram no Brasil um dos maiores Estados da violência permanente do mundo. Em muitos cantos, a sensação é a de que um barril de pólvora está prestes a explodir.
O império da maldade acossa a população. A brutalidade jorra em proporção geométrica e as paliativas soluções governamentais — melhoria e ampliação do sistema penitenciário, reforço e reaparelhamento das polícias ou policiais portando câmeras estão longe de dar conta do crescimento da violência.
O que se pode fazer de imediato? O beabá para combater a violência começa com o desfazimento da cosmética de miséria que se instalou no país, sob o olhar complacente dos governantes e suas promessas. O combate à violência está na pauta prioritária dos gestores públicos.
O Brasil, é triste, está se tornando um dos países com os maiores índices de criminalidade do planeta. Pior: a violência entorpece o ânimo social. O descalabro, fruto da banalização da violência e da morte, é a anestesia social. Um fenômeno que prenuncia o porvir de uma sociedade de zumbis. De tanto ver e sentir a morte, pertinho de si, as pessoas já não se abalam como antigamente. Entram em estupor, em estado de catatonia, presas, cegas, surdas e mudas, dentro de seu próprio medo. Essa catástrofe está gerando filhos duros, frios, insensíveis, danosos, que não têm sentido de lugar, de humanidade, de país, de Pátria. E nem de família.
Sem esperança, com emoções envenenadas pelo vírus das pandemias e por angústia, os cidadãos entram no limbo catatônico, assemelhando-se a dândis em passeio macabro e estonteante por um jardim de horrores.
A violência suga a vitamina da vida, a alegria de viver. O que fazer? Lutar com a arma da mobilização. Denunciar, pressionar, acusar, assinalar, abrir a palavra nas redes sociais. O momento exige participação social, oxigênio cívico, única força capaz de ressuscitar o animus animandi da sociedade.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político